Tears for Fears e as feridas do passado

tears for fears

Artista/Banda: Tears For Fears
Álbum: The Hurting
Gênero: Synth-pop / New Wave
Ano: 1983
Destaques: The Hurting / Mad World / Pale Shelter

por: Gabriel Marinho

Tears for Fears é uma banda britânica encabeçada por Roland Orzabal e Curt Smith, que surge nos anos 80 em meio ao boom do “New Romantic” que tomou muito do que se fazia de synth-pop na época, trazendo algo mais introspectivo e carregado para a cena. O álbum de estreia da banda Tears for Fears, “The Hurting” de 1983, sonoramente falando pode soar meio datado, entretanto, ainda hoje continua relevante e traz consigo muitos significados.

Com a maioria das letras sendo escritas por Orzabal, é possível dizer que acompanhamos vários períodos da vida (principalmente a infância) do protagonista dessa história (talvez o próprio Orzabal), com referências aos traumas que passou e com certo embasamento em cima da linha terapêutica do “Grito Primal”, criada pelo psicanalista Arthur Janov.

tears for fears

A parte técnica do processo terapêutico envolvendo o “Grito Primal” consiste em trazer à tona seus traumas “primais” que desencadearam os seus atuais problemas, que desencadearam no ser em que a pessoa se tornou. Caso algum de nossos leitores seja da área e tenha algo a dizer sobre essa linha psicanalítica, adoraríamos ouvir na sessão de comentários.

De mesmo nome do álbum – The Hurting – inicia o disco com uma batida que ecoa como uma estrada, a linha da guitarra entra dando o ritmo da canção, ela soa como uma busca, realmente parece que estamos ouvindo uma sessão de terapia gravada, ouvimos os cortes e as lembranças, algumas cenas desconexas, como se tudo tivesse vindo à tona de uma vez só e sem aviso… várias cenas são descritas ao longo da batida e em certos momentos é quase como se o psicólogo “entrasse”, guiando a viagem.

“Get in line with the things you know
Feel the Pain
Feel the sorrow
Touch the hurt and don’t let go
Get in line with the things you know
Learn to cry
Like a baby
Then the hurting won’t come back”

tears for fears

A segunda faixa – Mad World – é uma das minhas favoritas do Tears for Fears. É triste e com esse tom meio irônico, como se esse mundo triste em que o protagonista vive fizesse dele mesmo um louco também, afinal se ele não se encaixa acaba que também deve ser um dos loucos para quem está de fora o vendo e da mesma forma que ele soa como um espectador do mundo ao redor, nós ouvintes também viramos um espectador também daquela história.

A música toda é bem melancólica, o protagonista é um claro “outsider” buscando entender o meio ao seu redor, provavelmente um adolescente ou uma criança, dado os cenários descritos. A música voltou a ser muito falada ao ser inserida como trilha sonora do filme Donnie Darko de 2001, em um cover no piano feito pelo cantor Gary Jules. Eu particularmente prefiro a versão original do Tears for Fears, essa atmosfera dançante e melancólica que eles conseguem passar, como se a tristeza e a loucura andassem juntas, é muito autêntica.

“Went to school and I was very nervous
No one knew me, no one knew me
Hello, teacher, tell me what’s my lesson
Look right through me, look right through me”

A seguinte – Pale Shelter – fala sobre uma relação fria, onde um dos lados está claramente necessitado de uma certa atenção que nunca chega. Pode ser um filho por um pai, amigos, um casal, isso fica aberto para interpretação, mas o mais provável, tendo em conta a temática de volta a infância do álbum, que seja a falta de atenção dos pais, palpite meu.

A música tem um riff bem marcante, como as outras duas faixas, também dando a impressão de estarmos indo de uma cena a outra da memória do protagonista, e o vídeo clipe ilustra bem essa sensação, meio onírico, com Orzabal e Smith andando por vários cenários como observadores.

“When you don’t give me love
You give me pale shelter
You don’t give me love
You give me cold hands
And I cannot operate on this failure
When all I want to be is
Completely in command”

Algumas músicas desse disco podem ser consideradas de difícil audição, tanto pelo peso que pode trazer para o ouvinte (por identificação com as letras), como sonoramente falando; a quarta faixa, “Ideas as Opiates”, foi feita, como as outras faixas, baseada no “Grito Primal” e no trabalho do psicanalista Arthur Janov, essa em particular com base no livro “Prisoners of Pain” de 1980. Aqui tem papel de “respiro” dos 3 hit’s anteriores e para o que enfrentaremos em “Memories Fade”, próxima faixa do disco.

Essa quinta faixa do disco é a menos eletrônica de todo o álbum, é possível sentir todos os instrumentos de uma forma um pouco mais orgânica, com os sintetizadores aparecendo ocasionalmente apenas enquanto acompanham a introdução do Orzabal em um vocal quase “voice-over”, e com a inclusão de um saxofone que finaliza perfeitamente a canção.

Ao contrário das outras, que têm uma jornada introspectiva quase inconsciente e guiada, nessa percebemos um tom mais “consciente” do protagonista, meio que se dando conta do que ocorreu e se perguntando o que fazer para seguir em frente.

“I cannot grow
I cannot move
I cannot feel my age
The vice, like grip of tension holds me fast
Engulfed by you
What can I do?
When History’s my cage
Look foward to a future in the past

Memories fade, but the scars still linger”

A sexta faixa do disco, “Suffer The Children”, relata o que aparentemente parece ser a separação dos pais e como a criança lida com isso. A música tem uma atmosfera pesada, a estrutura toda dela não chega a ter um refrão, o que a torna mais difícil, exigindo mais do ouvinte. O ponto alto é a inclusão de um certo “coro” de criança (na verdade, feito por Caroline Orzabal, esposa de Roland na época) quase antes de finalizar a música, com Smith cantando “Suffer the Children…Suffer the Children…”.

“And convince him
Just talk to him
Cos he knows in his heart you won’t be home soon
He’s an only child in an only room
And he’s dependant on you”

tears for fears

A sétima faixa do disco, “Watch Me Bleed”, junto com “Memories Fade” é a mais orgânica do disco, a mais “analógica”, soando bem pós-punk, é uma porrada. Orzabal detalha como é esconder uma ferida muito grande e o que isso faz com você. Fica um pouco subjetivo se “sangrar” é por dentro ou por fora; o que fica claro é que dor do protagonista é muito profunda.

Um pouco do som (principalmente os acordes que seguem ao término do refrão) e os trechos como:

“I am full but feeling empty
For all the warmth it feels so cold”

 Me lembram muito Legião Urbana e me questiono se Renato ouviu esse disco dois anos antes de lançar “Baader-Meinhof Blues”, no disco também de estreia da Legião, quando Renato canta:

 “Já estou cheio de me sentir vazio.
 Meu corpo é quente, estou sentindo frio.”

Bem, nunca saberemos talvez. Mas algo é certo, “Watch Me Bleed” é uma música difícil e cheia de significados subjetivos.

“Change”, a faixa seguinte, é mais um dos hit’s do álbum, muito divertida e quebra o ritmo pesado e carregado do disco na hora certa. Começa com um o som de marimba (instrumento de madeira com teclas e tocado com duas baquetas), que deixa a canção muito marcante, só de ouvir a intro já é possível saber qual é a música.

A letra fala sobre como podemos mudar e que a qualidade dessa mudança depende do ponto de vista, assim como a interpretação da própria música. Orzabal já chegou a dizer que a letra não é exatamente sobre algo, deixando tudo mais subjetivo ainda.

Junto com “Ideas as Opiates”, a nona faixa do disco, “The Prisoner”, é a que mais destoa e a menos marcante do resto do álbum. Com seus 2:55 minutos de duração, a música começa com um som emulando um erro de computador, e depois vem a entrada da bateria e a voz rasgada de Smith, com a introdução de um som “épico” ao meio da canção, dando uma sensação de urgência.

Do álbum é a que menos fala comigo, acho até difícil interpretar do que se trata a canção, com o ar misterioso e de “ficção científica”, o ouvinte pode tentar levar como um anuncio do fim, uma introdução para o término do disco com “Start of The Breakdown”.

Depois de uma longa viagem interna pelos traumas da infância, o disco surpreende ao terminar de uma forma não esperançosa, a última faixa tem ótimos “solos” de bateria e marimba, que deixam ela bem marcante, com um piano bem suave ao fundo, mas entrega em sua letra uma incerteza sobre quem realmente somos ao fim dessa viagem, dando a entender que essa jornada (e aqui a jornada ao passado pelas memórias e a própria travessia pela vida) não é um meio e sim um fim em si mesmo.

“Sense of time is a powerful thing
And we love to laugh
Love to cry
Half alive
We love to
Go slow when we’re dancing for rain
Dry skin flakes where there’s ice in the vien
And we love to cry
Half alive

Is this the start of the breakdown?”

“The Hurting” é um disco marcante, cheio de hits (mas menos comercial) e que injustamente é menos lembrado que seu sucessor, responsável pelo sucesso dos hits “Head over Heels”, “Shout” e Everybody Wants to Rule the World”, entretanto, o primeiro registro continua sendo o mais autentico e original do Tears for Fear, muito significativo como uma jornada para reflexão de nossas vidas e como papel de “meio” para nos guiar a outras portas, abrindo muitos questionamentos e nos apresentando um mundo novo e diferente, embasado pelas vivencias de Orzabal, Smith e de Arthur Janov em seu “Primal Scream”.

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