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Quanto custa ser uma pessoa decente?

Eu queria escrever sobre um negócio que tem me incomodado faz um tempo. Um negócio que está difícil de engolir. Eu estou tentando organizar meus pensamentos para que todo mundo entenda e veja com meus óculos o que eu estou tentando dizer. Espero que eu não soe pedante de alguma maneira. Eu estou escrevendo isso aqui como mulher, frequentadora de um espaço ou espaços em comum com um montão de gente da internet e da vida real, não como colaboradora de um blog sobre música independente. Porque hoje eu não vou indicar banda alguma, eu quero falar apenas sobre um assunto que tem pairado sob nossas cabeças já faz um tempo. Óbvio que como essa é minha visão, talvez ela possa parecer seja meio privilegiada e meio sem noção pra algumas pessoas, mas eu convido todo mundo a discutir isso comigo de alguma maneira também. A sua visão também é muito importante. Pode comentar aqui embaixo, mandar mensagem para a página do blog, mandar mensagem diretamente ou o que for. Se você quiser falar, eu vou escutar.

Eu quis falar por aqui porque o blog é o lugar onde eu tenho voz, é onde podem me ouvir e talvez me entender. Não tô usando o blog de palanque pra nada. Eu só não quero que isso se perca em textões do Facebook, eu queria escrever sobre isso em um lugar que outras pessoas talvez possam entender. Da mesma maneira que eu “visto a camisa” pra indicar e torcer pelos artistas, eu sinto que eu tenho algo pra dizer agora também.

Agora contextualizando… Nos últimos tempos (ou últimos meses) tem surgido denúncias frequentes sobre casos de assédio, abuso (físico e emocional) e umas coisas bem pesadas sobre a cena alternativa. Sobre cena eu me refiro aos espaços (virtual ou real) onde rolam coisas sobre música independente brasileira, o tipo de música que geralmente escrevemos por aqui, não tem gênero específico, é sobre o indie e alternativo em geral. E eu não me refiro somente a São Paulo. A gente sabe e ouve falar de casos que acontecem no Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Fortaleza, Porto Alegre, Goiânia e por aí vai. Eu não me lembro quando isso começou, eu só lembro de ter me assustado com a quantidade, tem horas que parece que toda semana tem algo novo rolando.

Isso me assusta demais. Eu tenho deixado de ir em muito shows, eu tenho deixado de frequentar esses espaços, eu não vou a lugares que eu já ouvi boatos de que coisas estranhas acontecem, deixei de ouvir as bandas e artistas envolvidos com esses casos. Mas nada aconteceu comigo, eu não fui vítima disso. Se tá complicado pra mim, imagina pra quem sofreu e ainda tá sofrendo com tudo isso. Eu sinto muito pela cabeça de todas essas garotas que tão lidando com isso, que estão expondo, que estão dando a cara pra bater com seus relatos. Eu admiro todas elas pela coragem, mas eu imagino como elas devem estar se sentindo ao colocar tudo que as corrói pra fora, pra ver se algo acontece e esses caras sejam impedidos de continuar fazendo horrores.

Mas eles não são. Alguns são “cancelados” por algumas semanas, até meses, mas logo eles voltam a ativa. Produtores voltam a organizar shows com eles, a fan base se renova, lançam novas músicas e as pessoas esquecem o que aconteceu. Parece que é um fato isolado e tudo está normal de novo. Não. Não tem nada normal acontecendo aqui, eu não consigo achar isso normal, eu não consigo achar isso certo. A ferida criada no físico e principalmente no emocional dessas meninas abusadas e silenciadas não se cura tão facilmente, algumas não se curam jamais. E o pior é que isso volta a acontecer, os casos estão ficando tão comuns que parece até que muitos fingem o que cantam.

A cultura machista, a cultura do estupro, a cultura da soberania masculina domina. Os rapazes que muitas vezes estão em cima dos palcos acham que tem o direito de invadir e dominar essas meninas. Acham que sua “fama”, sua posição de poder os fazem irrecusáveis. “Como essa garota está dizendo não pra mim? Ela não sabe quem eu sou? Por que ela não iria me querer? Eu sou o máximo”. Eles não aceitam o “não”. Não conhecem os limites, não conhecem o respeito. A situação é gravíssima e parece não ter fim. Quanto mais se é denunciado, mais casos aparecem. Um pronunciamento aqui e outro lá e a história se repete.

É óbvio que não existe lugar perfeito, todo mundo comete erros, nada é perfeito, mas em um lugar onde praticamente todo mundo se conhece, é de se esperar que haja conversa e compreensão. As coisas erradas não estão acontecendo lá fora, elas estão acontecendo aqui dentro. Não está seguro pra mim, não é seguro para as minhas amigas. Como que deixamos um imbecil medíocre segurando uma guitarra, cantando músicas de dois ou três acordes ter tanto poder assim? Como a gente para isso? Será que conversar resolve? Eu não tenho resposta pra isso, aliás eu já não tenho certeza de mais nada.

Pra falar a verdade eu acho que eu tô errada, que eu erro muito, que eu faço pouco e que tem vezes que eu não faço nada. Da maneira que posso, tento oferecer espaço pra mais mulheres ocuparem e também exporem suas vozes. Talvez num ambiente rodeado de mulheres, os homens fiquem coagidos e não tentem fazer mais merda. Talvez num ambiente que nós estejamos em peso, eles consigam minar essas atitudes. Não sei se é falta de orientação e conversa enquanto cresciam, mas eu sei que precisamos conversar agora e colocar o dedo na ferida de assuntos assim para podermos criar um ambiente menos tenebroso pra todo mundo. A gente pode tentar culpar a socialização, achar explicação dentro da psicologia e filosofia, e o que for. Não acho que adianta. Acho que a gente tem que tentar resolver o problema. Falar sobre isso nesses espaços, nas casas de show, na internet, pode ser a solução. Eu acho né. Estou tentando ser otimista.

Conversei com algumas amigas minhas para entender o que elas pensam e estão sentindo sobre isso.

“Eu cheguei a me afastar por um tempo desse mundo de música independente justamente por me sentir desconfortável nesses espaços. Não me sentia, e ainda não sinto, segura ou mesmo bem-vinda nesses lugares. A falta de outras pessoas trans nesses espaços também contribui para sensação de não-pertencimento. Ambientes que antes eram a única coisa que me deixava feliz, passaram a me deixar mal. Não sei se foi a “cena” que mudou ou se fui eu, mas a frequência que os casos de abuso tem aparecido me deixa muito triste. E junto com eles vem as famosas passadas de pano. Todo mundo critica assédio, machismo, abuso, etc, mas quando acontece com o amiguinho ou com a banda que gosta, é só a banda expulsar o integrante que é o suficiente. A militância só acontece quando convém. Não sei como fazer para melhorar a situação, mas todos devem botar a mão na consciência, ouvir as vítimas e apoiar para o que for possível. Deveria ser óbvio, mas infelizmente ainda precisa ser dito.”

Tina Durães

“Final de semana passado surgiu uma denúncia de estupro em relação a um dos caras que mora no local que íamos tocar em São Paulo. Devido a isto, decidimos (conjuntamente com as restantes bandas do evento) cancelar o show e estamos procurando desesperadamente outro local na mesma data para que nosso calendário não seja desfeito. Eu não conhecia esse sujeito, mas acredito que seja pertinente eu me posicionar visto que eu iria tocar em seu local e que meus amigos da Ultraluna e Quasar foram extremamente prejudicados com essa situação, além da vítima, o que eu não preciso nem falar sobre. É muito desconfortável para mim, como mulher, perceber que dificilmente existam lugares seguros nesse meio em que vivo. Quase todo mês surge uma denúncia nova, e essas pessoas são retiradas de suas respectivas bandas, mas não acontece nada além disso. E as vítimas têm que levar o que aconteceu para a vida toda. Não é simples superar. Não sei quem é a vítima – ninguém precisa saber para apoiar, mas visto que li o relato e, nada além da minha obrigação, me solidarizo e ofereço meu apoio para o que precisar.”

Lia Kapp

 

Não é simplesmente “cancelar” algum artista porque ele disse coisa x ou y. Estamos falando de pessoas que foram abusadas, agredidas, estamos falando de traumas reais. São vidas que estão sendo impactadas, são pessoas que estão vulneráveis, fragilizadas e com medo. Até quando teremos que ver essas coisas acontecendo para que atitudes reais sejam tomadas? Quem vai conseguir parar isso? O sentimento de impotência é enorme e sufocante. Porém não podemos desistir. Resistimos.